O difícil acesso à habitação está longe de ser um problema exclusivo de Portugal, abrangendo outros países europeus. É por isso que a Comissão Europeia está a arregaçar as mangas e vai divulgar um novo plano de emergência para a habitação a 16 de dezembro. Este plano “vai ter uma dimensão invulgar, vai trazer um conjunto de recursos muito grandes”, revela em entrevista ao idealista/news Francisco Rocha Antunes, Co-Chair do Conselho Europeu de Habitação Acessível da Urban Land Institute (ULI). Estamos a falar de um número “sempre acima de 1 milhão de casas, que vão ter financiamento comunitário”, anuncia.
Até agora foram revelados poucos detalhes sobre o que consta no novo plano de habitação que Bruxelas vai apresentar em dezembro. “Só quando for divulgado (…) é que vamos saber qual é o formato final. Mas estamos convencidos que vai ser muito impactante. Até porque a Europa entende como estratégico resolver o problema da habitação, porque senão não há crescimento económico, não há atração nem retenção de talento”, explica o porta-voz da ULI, associação que é consultada pelas instituições europeias no desenho de planos como este. 
“Vamos ter a possibilidade de ter instrumentos europeus para melhorar a acessibilidade da habitação. Isso é seguro”
Mas só o financiamento comunitário não chega. Portugal ainda tem muito a aprender com o exemplo de outros países para atrair investimento em habitação acessível. Por um lado, “interessa atrair investidores institucionais de longo prazo”, como são exemplo os fundos de pensões, indica Francisco Rocha Antunes. E, por outro, há que olhar para o exemplo de Madrid no que diz respeito às cooperativas de habitação, aponta o também fundador e presidente executivo da MOME, gestora profissional deste tipo de cooperativas em Portugal.
“Para resolver a questão da habitação acessível, não há uma bala de prata. Há conjunto de coisas que têm de ser feitas”, sublinha Francisco Rocha Antunes. E uma das questões mais importantes passa por criar um clima legal estável. Até porque, toda a incerteza em torno do IVA na construção, “já afastou investidores importantíssimos do mercado português”, como foi o caso de uma grande empresa francesa especializada em habitação acessível, alerta ainda nesta entrevista ao idealista/news realizada durante a Semana da Reabilitação Urbana do Porto.
Habitação acessível na Europa
Francisco Rocha Antunes, Co-Chair do Conselho Europeu de Habitação Acessível da Urban Land InstituteCréditos: Gonçalo Lopes | idealista/news
Qual é o papel da Urban Land Institute (ULI) na promoção de habitação acessível na Europa? 
A ULI é uma associação interdisciplinar que partilha conhecimento entre profissionais. O imobiliário é um sistema muito complexo, tem muitas variáveis e é preciso saber conjugá-las da maneira certa. E o que fazemos na ULI é tentar perceber o que resultou nuns sítios, o que não resultou noutros e tentar descobrir porquê. Há muitos anos que a ULI definiu aquilo que hoje chamamos de habitação acessível. Ou seja, a primeira vez que foi definido em termos formais o que é ‘Affordable Housing’ tem muito que ver com o trabalho desenvolvido pela associação. Isto porque a ULI, embora seja neste momento muito forte na Europa, tem origem nos EUA, onde apareceu esta ideia de que seria muito importante desenhar habitação para as classes trabalhadoras críticas, como enfermeiros, polícias e professores, pessoas que, não sendo ricas, precisavam de viver no meio das cidades. E, portanto, todo este processo vem daí. O que a ULI faz é esta partilha de experiências que nos permite tentar descobrir o que funcionou nos países e pode resultar noutros, o que é muito enriquecedor.
O ULI trabalha em colaboração direta com a Comissão Europeia?
Temos contactos com as principais instituições europeias. Neste momento, temos uma iniciativa muito importante, que se chama ‘C Change for Housing’. A Comissão Europeia vai apresentar um programa muito importante de habitação no dia 16 de dezembro, onde a Europa vai assumir a habitação como uma missão estratégica. E, portanto, sim, temos um contacto regular com a União Europeia e temos estado envolvidos em muitas consultas, até porque a Comissão Europeia tem a regra de consultar muitos atores e nós, como um dos atores, somos consultados e participamos ativamente.
“A Europa entende como estratégico resolver o problema da habitação, porque senão não há crescimento económico”
O que nos pode adiantar sobre o plano da habitação que vai ser apresentado por Bruxelas no dia 16 de dezembro?
O plano vai ter uma dimensão invulgar, vai trazer um conjunto de recursos muito grandes. Não sabemos exatamente que número de casas que estamos a falar, mas será sempre acima de 1 milhão de casas, que vão ter financiamento comunitário. Mas com regras muito claras. Ou seja, não se vai financiar a construção para depois as pessoas venderem as casas, seguramente que isso não vai acontecer. E, portanto, aqui estão a ser estudados vários formatos. Só quando for divulgado o plano no dia 16 de dezembro é que vamos saber qual é o formato final. Mas estamos convencidos que vai ser muito impactante. Até porque a Europa entende como estratégico resolver o problema da habitação, porque senão não há crescimento económico, não há atração nem retenção de talento. Todas as coisas que fazem da Europa um sítio bom estão um pouco em causa pela dificuldade em morar. Pensamos que a dificuldade de conseguir casa é portuguesa, mas está longe de ser uma questão exclusivamente portuguesa. Infelizmente, somos dos piores em termos de indicadores. Portanto, vamos ter a possibilidade de ter instrumentos europeus para melhorar a acessibilidade da habitação. Isso é seguro.
Plano europeu de habitação acessível
Comissão EuropeiaGetty images
É Co-Chair do Conselho Europeu de Habitação Acessível do ULI há mais de um ano e meio. Que estratégias têm sido delineadas com os líderes internacionais para enfrentar os desafios da habitação acessível na Europa? Quais se aplicam a Portugal?
Este ano e meio tem sido de muita aprendizagem, de muita partilha. Temos aprendido que há muitos formatos que não utilizamos em Portugal, que são muito interessantes e que se podem aplicar no país. E, portanto, temos uma expectativa muito grande desta partilha de conhecimento que a atividade do ‘Affordable Living’ tem praticado. Temos sensivelmente 30 profissionais que estão todos empenhados em fazer habitação acessível nos seus países. E esta partilha tem-nos ensinado muitas coisas. É muito importante normalizarmos critérios, conseguirmos atrair investimento de longo prazo. Por exemplo, os fundos de pensões, que investem a 30 anos, são parceiros ideais neste tipo de projetos, porque são fundos que não querem ter uma valorização enorme, mas querem ter uma valorização segura e a garantia que o dinheiro das pensões poupadas está disponível daqui a 30 anos. E o imobiliário tem essa vantagem e por ser menos volátil, ao contrário das ações e de outros ativos. 
“Para termos habitação acessível é muito importante atrairmos investidores de longo prazo”
Que modelos de habitação estão a ser aplicados noutros países que encaixam em Portugal?
Estamos muito convencidos que soluções que tenham a ver com a acessibilidade ao arrendamento e criar condições para as pessoas terem uma casa duradoura (independentemente de ser um formato de venda ou não) têm muito bons resultados ao serem aplicadas em muitos países. A Áustria é um caso clássico e também temos os exemplos dos Países Baixos, da Dinamarca e da Alemanha. Estes quatro países estão claramente mais avançados do que nós. Portugal não está nada avançado nesta área, infelizmente, pelo que temos muito a aprender com estes países.
Mas tem uma vantagem: hoje, Portugal é um destino de investimento europeu em termos de imobiliário e isso pode permitir que também novos formatos na área da habitação acessível sejam financiados por investidores institucionais. Os investidores institucionais de longo prazo são os investidores que nos interessa atrair, porque são aqueles que querem esperar durante 20 ou 30 anos, que não fazem negócios de quatro ou cinco anos. E isso é algo que temos aprendido: para termos habitação acessível é muito importante atrairmos investidores de longo prazo.
Que tipo de construção, além da tradicional, se poderia apostar? A construção híbrida (com betão e madeira) e a construção industrializada fazem parte da solução?
Um dos maiores desafios que se coloca é fazer duas coisas ao mesmo tempo: construir simultaneamente habitação mais acessível e mais sustentável. Fazer habitação acessível e sustentável ao mesmo tempo é um desafio mais complicado do que fazer só acessível, porque é evidente que não podemos construir milhões de casas da maneira que fazemos hoje. Primeiro, porque isto é uma pegada absolutamente insuportável em termos de carbono. E, segundo, porque não temos mão de obra para fazer um décimo destas casas. Portanto, tudo isto converge para que se tenham de encontrar formas novas, mais repetidas, mais fora da obra, mais ‘off-site’, que nos permitam ser mais eficientes e com menos impacto carbónico. É um desafio muito grande para a indústria, que vai ter de se reinventar muito. Mas já há bons sinais de que isto está a começar a acontecer.
Atração de investimento imobiliário
Freepik
Como é que as cooperativas de habitação podem ajudar a colocar no mercado mais casas acessíveis? 
As cooperativas são um formato que em Portugal foi abandonado por razões muito diferentes. Temos o ótimo exemplo de Madrid que fomos buscar para fazer cooperativas em Portugal, nomeadamente na minha empresa, a MOME. A atividade das cooperativas em Espanha, ao contrário de em Portugal, nunca desapareceu – formalmente nunca despareceram no nosso país, mas na prática deixaram de fazer casas. Agora, temos exemplos, como da comunidade de Madrid e de Barcelona, que são muito interessantes e que são completamente replicáveis cá. E, portanto, esse é um bom exemplo do que se pode fazer em termos de transferência de ‘know-how’ e de procedimentos de uns países para os outros.
“Para resolver a questão da habitação acessível, não há uma bala de prata. Há conjunto de coisas que têm de ser feitas. As cooperativas trazem uma contribuição muito importante”
O que falta fazer para dinamizar este modelo colaborativo em Portugal (mais parceiras público-privadas, financiamento, terrenos …)?
Acreditamos que não é preciso fazer especialmente nada, a não ser mudarmos a página sobre a ideia que temos das cooperativas. Esta nova onda de cooperativas é viável, já estão a ser feitas, embora ainda não em escala. O que nós agora temos de perceber é que para resolver a questão da habitação acessível, não há uma bala de prata. Há conjunto de coisas que têm de ser feitas. As cooperativas trazem uma contribuição muito importante, que é prescindirem do lucro. Isto não é uma coisa muito habitual no mercado habitacional português, mas não é nada de estranho. Em Espanha, temos cooperativas que fazem milhares de casas por ano com a natureza cooperativa, ou seja, é um somatório de custos. Evidentemente que isto significa que, do lado da promoção ou de quem faz casas, tem de se ter uma mentalidade diferente. 
Mas também significa um maior desafio para os municípios, que têm de perceber que é da sua responsabilidade criar terrenos - ainda que não os vendam, ainda que sejam direitos de superfície de longo prazo -, de maneira que o custo do terreno (que é um dos maiores custos inerentes às casas) também desapareça. E depois há as regulamentações. Não faz muito sentido quereremos fazer habitação económica ou habitação acessível e obrigar todas as casas a terem um estacionamento enterrado, que é caríssimo. Há aqui muitas questões que se podem melhorar e isto significa que tem de haver várias contribuições para que o resultado seja, de facto, melhor. Não se pode pedir só aos promotores, ou só às câmaras, ou só aos governos ou só às Finanças. É um conjunto de soluções que todas juntas podem, sim, alterar substancialmente o panorama.
Cooperativas de habitação
Hera.coop, cooperativa de habitação da MOME no PortoMOME
Como vê a redução do IVA para 6% prevista até março de 2026 para casas à venda até 648 mil euros e casas para arrendar até 2.300 euros?
A habitação acessível já tem IVA a 6%. Há uma coisa à volta do tema do IVA, que é muito perigosa e que é muito portuguesa, infelizmente, que é a incerteza. O investimento imobiliário, mais do que tudo, precisa de regras estáveis. Todo este cenário instável sobre as possíveis mudanças das regras do IVA na construção cria uma incerteza que já afastou investidores importantíssimos do mercado português. Nós tínhamos em Portugal uma grande empresa francesa especializada em habitação acessível, que com estas trapalhices do IVA foi-se embora, desistiu do mercado português. E é preciso perceber que quando estamos a mobilizar milhares de milhões de euros, há que haver regras claras e confiança, senão este investimento não aparece. Nós, infelizmente, precisamos de muito dinheiro para fazer muitas casas. 
Já foi alertado pelos promotores que há projetos parados à espera do IVA a 6%. Esta questão fica resolvida com a retroatividade da medida anunciada pelo Governo?
Aparentemente, o ministro da Habitação resolveu o assunto ao dizer que leva ao Parlamento uma proposta que faz com que [o IVA a 6%] conte desde o dia em que foi anunciado, que é para não haver esta questão da espera. Vamos ver. Quem faz a lei é a Assembleia da República não é o Governo, portanto, enquanto esta lei não estiver feita, estamos todos expectantes. Esperemos que tenha sido resolvido, porque era uma complicação artificial desnecessária. 
“Muitas pessoas que têm os instrumentos para disponibilizar mais terrenos para que haja mais casas têm uma resistência muito grande a que isso seja feito”
Qual é a sua perspetiva sobre a evolução dos preços das casas em Portugal para 2026?
É má, os preços estão a subir muito. Continuamos com uma discussão muito difícil de compreender: há pessoas que trabalham no urbanismo, nomeadamente em Portugal, que insistem que não são precisas mais casas. É algo que assusta, quando é evidente que são precisas mais casas. Muitas pessoas que têm os instrumentos para disponibilizar mais terrenos para que haja mais casas têm uma resistência muito grande a que isso seja feito, porque fizeram as suas análises há 20 anos, quando aparentemente o mercado estaria equilibrado. Na altura talvez fizesse sentido, 20 anos depois seguramente não faz. Isso é uma resistência grande e, portanto, era importante perceber se que é preciso disponibilizar muito mais capacidade construtiva para que os preços dos terrenos não continuem a subir tanto como têm subido. Os valores dos terrenos sobem porque são escassos, e essa escassez é artificialmente criada com as proibições de construção. E, portanto, os instrumentos são muitos e são diversificados, e cada um tem de fazer a sua parte. Esta ideia de apontar o dedo aos outros é uma ideia muito fácil, mas não resolve nada.
Fonte: Novo plano de habitação de Bruxelas “vai ser muito impactante” — idealista/news
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