Este projeto imobiliário faz das pessoas com deficiência casos de êxito Situado em Cascais, o Café Dibble abriu portas no início de julho e é o reflexo da missão da Semear. Conhece toda a história. 26 set 2025 min de leitura A Mariana tem 30 anos e durante muito tempo foi uma incerteza. As dificuldades intelectuais e de desenvolvimento pareciam toldar o futuro e pôr em causa o seu lugar pleno na sociedade. Mas o Semear veio provar que nem tudo é o que parece, sobretudo quando há uma resposta adequada e um acompanhamento estruturado. Hoje o seu currículo profissional mostra um percurso pelo Sea The Future – um restaurante no Parque das Nações – e pela empresa Logoplaste, onde se encontra atualmente a apoiar todo o serviço de refeições para os colaboradores. Também o Mário é aluno do Semear e está a estagiar no Hospital de Cascais, no apoio à cantina para os utentes. O emprego, que ambos escolheram e abraçam com dedicação, fê-los perspectivar novos e mais altos voos. Assim, no passado dia 26 de julho casaram-se, já com uma confiança e independência bem esculpida dentro de si, bem como, a conquista de uma autonomia financeira para viverem com dignidade. A Mariana e o Mário são casos de sucesso que espelham a missão do Semear, uma organização que tem como objetivo dar formação e posteriormente integrar pessoas com dificuldade intelectual e do desenvolvimento no mercado de trabalho. Tanto é que criaram mais uma oportunidade de emprego ao inaugurarem, no início do mês de julho o Café Dibble, em Cascais, para uma vez mais provarem que “todos têm lugar”. Estivemos à conversa com Joana Santiago, Presidente do Semear, que nos falou da missão da organização, das pedras que encontram pelo caminho e da abertura do espaço. Como é que se começou a semear inclusão? Os três negócios sociais que levam os alunos a pôr a mão na massa e a mudar mentalidades O caminho que se faz desde a capacitação até à autonomia A atenção às preferências individuais é a chave da felicidade Abertura do Dibble é o consumar de tudo o que já fazem A importância de trabalhar: Fortificar a fragilidade Empresas ficam mais ricas com a contratação inclusiva Os avanços e ainda atrasos em Portugal Como manter viva uma organização social sem fins lucrativos? As crianças e a deficiência A construção diária de um legado Como é que se começou a semear inclusão? Sorridente e com a simpatia a ser denunciada pela voz, Joana Santiago começou a entrevista por dar contextualização, ciente, talvez, de que os obstáculos com que lida há anos continuam a ser uma página em branco para aqueles que vivem alheados desta realidade: “O grande problema que existe quando temos um filho com deficiência é ‘e agora onde é que nos vamos dirigir? Quem é que nos pode ajudar?’, a todos os níveis, quer na saúde, na educação, no aspeto legal. Portugal tem tudo descentralizado”, afirmou. Confrontada com a escassez de respostas direcionadas para pessoas com dificuldade intelectual e do desenvolvimento, e com um filho a precisar delas, Joana sentiu a necessidade de começar a tricotar soluções e iniciativas. Este foi o empurrão que a levou a criar a Academia Semear, uma escola de formação certificada com cursos específicos para esta população “de forma a ganharem competências pessoais, sociais e depois técnicas para integrar o mercado de trabalho”, explicou, adiantando o objetivo primordial e final: a inclusão através do trabalho e, consequente, participação na sociedade. Direcionar, acompanhar e moldar a formação para um determinado grupo revelou-se fundamental. Isto porque, de acordo com a Presidente do Semear, em Portugal, “existem cursos de formação profissional que estão adaptados para pessoas com deficiência, mas é para a deficiência toda, portanto, não estão adaptados efetivamente para este público-alvo”, disse, acrescentando que “a deficiência é um mundo”. Durante a inauguração do DibbleSemear Os três negócios sociais que levam os alunos a pôr a mão na massa e a mudar mentalidades Mas o Semear é mais do que uma Academia e, para satisfazer um dos seus propósitos – que é capacitar para depois empregar – desenvolveu também negócios ligados à produção, cuja receita reverte para a formação e contribui em simultâneo para mudar estigmas. Além de levar os alunos a pôr a mão na massa. “As pessoas percebem que eles fazem produtos de qualidade e competitivos, acabando por se aperceberem que também têm capacidades e competências”, explicou. Assim, aliado à Academia, têm ainda: Mercearia Gourmet – produzem produtos gourmet a partir de frutos em risco de desperdício alimentar que recolhem. Estes estão certificados e são vendidos em espaços comerciais, bem como, nos cabazes de Natal. “Temos empregados seis jovens nesta atividade. Uns trabalham na cozinha e outros trabalham no armazém. Além disso, recebemos os formandos todos que estão na academia para treinarem competências de trabalho”, explicou Joana Santiago; Unidade de produção de cerâmica – aprendem a fazer cerâmica, a mesma que é utilitária e decorativa; A Terra – é uma unidade de produção agrícola biológica, que vem também vincar a preocupação ambiental existente no Semear. Neste âmbito fazem ações de voluntariado corporativo e team-building com empresas, onde os colaboradores aprendem com os alunos da academia a trabalhar a terra. As empresas podem ainda “apadrinhar” terra, pelo que tudo o que sai dessa área cultivada fica a cargo da empresa decidir o que fazer com a produção – tanto pode distribuir pelos seus colaboradores ou fornecer a outra associação que precise. Estão também ligados à restauração com o restaurante Único, situado no CCB e com a abertura, no início de Julho, do Dibble Café, no Pestana Citadela de Cascais. O caminho que se faz desde a capacitação até à autonomia Café DibbleSemear Antes de chegarem ao mercado de trabalho – quer através da integração em empresas ou nos negócios sociais do Dibble – há degraus que vão sendo escalados. No início da escadaria, começam por ganhar competências em sala de aula para depois passarem para as competências na sociedade. Joana Santiago conta que os alunos fazem visitas às empresas; aprendem a andar de autocarro e usar o dinheiro, mas também a irem às lojas e a fazerem compras. “Eles vão fazendo uma aproximação gradual à comunidade”. No total a duração do curso da academia ronda em média dois anos e meio e está dividido em componente teórica, componente prática e componente de integração profissional, sendo que neste último têm vários tipos de estágio, dentro das áreas preferenciais, até conseguirem integrar o mercado de trabalho. Quando o fazem, significa que terminaram a formação, o que não é sinónimo de um virar de costas. Segue-se um “follow-up”, mantendo-se um acompanhamento de apoio à empresa e aos ex-alunos, se necessário. A atenção às preferências individuais é a chave da felicidade De acordo com a presidente do Semear, áreas onde as atividades são mais repetitivas são também aquelas em que, logo à partida, estes jovens e adultos mostram mais potencial de trabalho “porque não requer muito da parte intelectual”, refere. Assim, cadeias de logística, supermercados e armazéns são muito ricos nesta oferta. “Eu tenho jovens que nunca conseguiram aprender a ler e a escrever, mas isso não é impeditivo de serem competentes. Toda a vida houve analfabetos no mercado de trabalho.” Durante o curso, à medida que vão tendo experiências práticas vão também ganhando noções dos gostos preferenciais. Neste sentido, de acordo com Joana Santiago, os alunos têm a oportunidade de escolher a área onde querem ficar e a partir daí, dão-lhes ferramentas mais específicas para que se integrem no futuro. “O mais importante de tudo é a pessoa certa estar no lugar certo, ou seja, não vale a pena eu insistir pôr uma pessoa que não gosta de servir à mesa num café, eu tenho que pôr uma pessoa que gosta de falar com os outros. É como nós, é igual, é procurar que estas pessoas se integrem num lugar onde elas se sentem mais felizes”, referiu. Abertura do Dibble é o consumar de tudo o que já fazem Café DibbleSemear A experiência positiva que adveio do restaurante Único – uma parceria entre o Semear, o CCB e o grupo Sushi Café – foi o trampolim para abraçarem o desafio lançado pelo Grupo Pestana e abrirem um café. “É mais uma maneira de fazer tudo o aquilo que já fazemos, que é empregar pessoas com deficiência, vender aquilo que fazemos e mudar mentalidades”, apontou Joana Santiago. Se por um lado, no Único, põem à venda os seus produtos e formam os colaboradores que desempenham as funções, já o café Dibble vai além do apoio à empregabilidade uma vez que a gestão é da total responsabilidade do Semear. Nesta cafetaria tudo é preparado com ingredientes naturais, muitos deles provenientes das hortas biológicas Terra, uma das unidades de negócio social. E encontram-se também produtos da mercearia Semear, como granolas, compotas e infusões, além das peças de cerâmica feitas à mão pelos formandos da academia. No local estão colaboradores que já terminaram a formação, contam com contratos de trabalho e exercem as funções de qualquer café: “servir às mesas, atender clientes, fazer a preparação destas refeições, dar apoio a catering e inclusive falar inglês, porque visitam-nos muitos turistas”, detalhou a Presidente. “Ajudam em tudo o que for preciso, estão preparados para isso”, acrescentou. O café Dibble – Tasty Inclusion by Semear, situado no Pestana Citadela de Cascais, abriu portas no passado dia 3 de julho e a inauguração contou com a presença do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Durante a entrevista, Joana Santiago fez questão de louvar a parceria com a Câmara de Cascais “que auxilia na divulgação” e, sobretudo, com o Grupo Pestana “que tem esta responsabilidade social bem vincada, cede o espaço e permitiu colocar ao serviço da população mais uma resposta inclusiva”. Joana Santiago, Presidente do Semear à esquerda, Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República ao centro, e Carlos Carreiras, Presidente da Câmara de Cascais à direitaSemear A importância de trabalhar: Fortificar a fragilidade Joana Santiago acredita e defende que quanto mais o Semear puder integrar, tanto melhor. Porquê? “Estas pessoas passam a receber um salário e tornam-se super felizes porque sentem-se úteis e estão ocupadas o dia inteiro”, avança a fundadora da organização sem fins lucrativos. A alternativa, segundo Joana, é ficarem em casa ou em centro de atividade ocupacionais, que são respostas que os levam a estar fechados numa sala ou instituição e “não têm este percurso mais inclusivo na comunidade”, identifica. No entanto, Joana não descarta também a importância destes centros, especialmente para pessoas que têm dificuldades intelectuais mais severas impossibilitando-os de ter autonomia suficiente para integrarem o mercado de trabalho. “Na academia não somos resposta para estas pessoas que têm que estar em ambientes mais protegidos, com apoios permanentes e contínuos para que possam continuar a sua vida”, esclarece. Mas até aqui as respostas continuam a ser escassas. “Apesar de haverem muitos centros destes, não há vagas, são anos de espera, o que é uma tristeza”, dá conta. Durante a inauguração do DibbleSemear Empresas ficam mais ricas com a contratação inclusiva Desde cedo Joana percebeu que não bastava formar pessoas com dificuldade intelectual e do desenvolvimento, tinham que formar também a sociedade para que esta percebesse que “independentemente das deficiências, as pessoas têm competências e é uma mais-valia recebê-las na comunidade”, sublinhou. A justificação para a Presidente é muito direta e concisa: “isto faz bem às próprias equipas, terem esta integração em empresas”, começa por dizer. “As pessoas mudam, passam a ter outra mentalidade e a serem menos auto-queixosas por terem ao lado uma pessoa que faz tudo para vencer na vida e é um exemplo de superação”, atirou. Mas os favores não são bem-vindos, não é isso que se procura ou que se quer por parte do Semear quando incentivam empresas a contratar pessoas com dificuldades intelectuais e do desenvolvimento. “Têm que ter competências e têm que trabalhar bem, isso é o que nós defendemos, as empresas não têm que fazer um favor. Estas pessoas têm que agregar e ajudar a empresa a crescer”, esclareceu Joana Santiago. Ainda assim, embora exista a Lei das Quotas – que estabelece que as empresas são obrigadas a contratar um mínimo de pessoas com deficiência, com um grau de incapacidade igual ou superior a 60% – a fundadora da organização reconhece que ainda existe alguma relutância. No Semear dão também formação a empresas para lhes fornecer ferramentas de integração social e profissional, mas a adesão ainda não é risonha. “Eu acho que as empresas acreditam que são capazes de fazer isto sozinhas e não são”, afirma. “Não há dúvida que isto é uma realidade diferente, porque na deficiência motora põe-se uma rampa e adapta-se o posto de trabalho, mas na dificuldade intelectual é preciso dar ferramentas e instruir, as pessoas não estão preparadas para saberem lidar e não é preciso ter um curso superior, é só dar umas dicas”, acrescenta a fundadora. Mas de nada vale se não houver uma predisposição da empresa para isto, refere. Questionada sobre o que é preciso para o mercado de trabalho começar a aceitar mais este tipo de pessoas, Joana Santiago mirou numa palavra: “paciência”. “É um processo mais lento. Enquanto que uma pessoa sem deficiência faz uma formação e aprende, nos casos de pessoas com dificuldade intelectual é preciso haver uma certa sensibilização por parte da empresa para que esta aguarde para ver o resultado da empregabilidade daquelas pessoas”. Os avanços e ainda atrasos em Portugal Durante a inauguração do DibbleSemear Quando a questão dos apoios e incentivos foi posta em cima da mesa, Joana Santiago foi imperativa, embora existam revelam-se “completamente insuficientes”. Apesar de ressaltar melhorias, a avaliar os anos em que já se debruça sobre este tema, afirma também que “nesta área somos um país em desenvolvimento”. E prosseguiu, “[no Semear] nós só podemos ir fazendo à medida das nossas possibilidades e há muita gente à espera, não imagina a quantidade de gente que está em casa”. Como manter viva uma organização social sem fins lucrativos? A sustentabilidade destes projetos é um dos maiores desafios apontados pela fundadora. “Nós estamos a resolver um problema que devia ser resolvido pelo Estado e pela sociedade”, afirmou. “É uma luta desenfreada para procurar financiamento para se sobreviver. É muito difícil e ao mesmo tempo isso vai interferir no nosso próprio trabalho do dia-a-dia, porque nunca temos os recursos necessários para fazer um bom trabalho”. É neste contexto que Joana voltou a fazer a ponte para os negócios sociais do Semear, referindo que este é o meio de conseguirem ter as próprias receitas e poderem crescer gradualmente. “Ter um negócio e ao mesmo tempo estar a responder a um problema social é um desafio” Às barreiras financeiras, acrescem as barreiras fruto das mentalidades. A Presidente da organização acredita que ao porem estas pessoas com dificuldade intelectual e do desenvolvimento no terreno, o objetivo “não é expô-las, é mostrar aquilo que são capazes de fazer” e, consequentemente, “desmistificar tabus”. “A sociedade tem que ir crescendo próxima a pessoas com dificuldade intelectual e do desenvolvimento e ir-se adaptando”, ressaltou. As crianças e a deficiência Questionada sobre como abordar esta temática a crianças de forma natural, Joana Santiago esclareceu que as coisas têm que ser tratadas pelos nomes, sem barreiras ou rodeios. E deu exemplo de uma abordagem inclusiva: “Ela tem dificuldade em ir à casa de banho, se calhar vai precisar de ti para ir com ela. Ela se calhar precisa que tu abras o pacote do pão porque não consegue abrir sozinha. Mas todos nós somos diferentes, eu tenho olhos azuis, tu tens olhos castanhos, esta pessoa tem esta dificuldade e eu tenho outra”. A fundadora conta que em casa, os seus outros filhos sempre lidaram de forma natural com o facto de um dos irmãos ter dificuldade intelectual e do desenvolvimento. “Eles sabiam perfeitamente que o irmão demorava mais tempo a vestir-se que o outro, ou que não conseguia comer sozinho, mas para eles isso não era drama, não era problema, era assim e pronto, nunca foi motivo de conversa”, fez saber. A construção diária de um legado Antes de terminar a entrevista, quisemos saber qual é a sensação de deitar a cabeça na almofada à noite sabendo que se ajudou a tornar o mundo em algo melhor, porque a isso, só Joana Santiago consegue responder. A Presidente sorriu e permitiu-se pensar na pergunta, revelando que nunca se tinha indagado sobre ela. Mas limitou-se a dizer: “acho que uma grande ajuda que eu estou a dar ao meu filho é fazer com que os outros o aceitem melhor”. E este é um legado que fica para todos. Ainda há muitas pedras no caminho, mas talvez com elas se continuem a construir mais castelos inclusivos. Fonte:Dibble by Semear: café inclusivo abre portas em Cascais — idealista/news Partilhar artigo FacebookXPinterestWhatsAppCopiar link Link copiado