Casas Luz ajustável, silêncio e previsibilidade ajudam a criar um espaço que respeita o cérebro, mas o equilíbrio entre tudo é pessoal. 17 out 2025 min de leitura A palavra neurodivergência está a entrar cada vez mais nas conversas do dia-a-dia, mas continua a ser muitas vezes reduzida a estereótipos ou mal compreendida. Falamos de pessoas cujo cérebro processa, aprende ou se relaciona de forma diferente daquilo que é considerado “típico”. Autismo, PHDA (Perturbação de Hiperatividade/Défice de Atenção), dislexia, altas capacidades e síndrome de Tourette cabem neste conceito. E se até agora esta realidade era, sobretudo, discutida em consultórios de psicologia e psiquiatria ou nas escolas, começa a ganhar terreno num lugar fundamental: a casa. Como deve ser um lar para uma pessoa neurodivergente? O que valoriza? Que elementos podem ser verdadeiros aliados no bem-estar? Se estás a construir, reabilitar, comprar, vender, arrendar ou simplesmente a decorar e organizar para viver melhor, este guia foi feito para ti. A pergunta central é simples: como desenhar espaços que ajudem o cérebro a descansar, focar e pertencer? Neurodivergência: o que é e porque interessa à tua casa Casa: o regulador sensorial Decoração que regula: mais função, menos ruído visual Organização e rotina: o cérebro também precisa de um mapa Limpeza e manutenção: reduzir a fricção Divisão a divisão: ajustar o ambiente para o cérebro descansar Neurodivergência: o que é e porque interessa à tua casa Freepik Neurodivergente refere-se a uma condição em que a pessoa apresenta diferenças neurológicas, comportamentais, de comunicação e de aprendizagem que se afastam do padrão esperado pela sociedade. A neurodivergência descreve modos distintos de processar: Estímulos (sons, luzes, toques, cheiros); Organizar a atenção; Planear tarefas; Interpretar a comunicação. Cada cérebro percebe o ambiente à sua maneira, e essa diferença, longe de ser um defeito, é uma variação natural da mente humana. Entre as formas mais conhecidas de neurodiversidade estão: O TDAH; O autismo; A síndrome de Tourette; A bipolaridade. Condições que se manifestam através de características como hiperatividade, despistes, oscilações de humor, dificuldades na interação social ou movimentos involuntários. A casa é, por isso, um ecossistema sensorial. O que para uma pessoa é “normal”, para outra pode ser ruído, brilho, textura ou desorganização que cansam o cérebro. Pensar numa casa “neuroamigável” é pensar numa casa melhor para todos: um espaço que reduz o stress, facilita a rotina, melhora o descanso e aumenta a produtividade e a felicidade. Como resume a psicóloga Rita Gama Ferreira, especialista em PHDA no adulto: Acima de tudo, é preciso adaptar o espaço à pessoa, porque o conforto sensorial e cognitivo varia muito de caso para caso. Em casa, o luxo é sentir que o mundo abranda. Quando o espaço te ajuda a viver, o teu cérebro agradece, e tu também. Casa: o regulador sensorial Freepik Numa nova construção ou reabilitação, o primeiro passo é entender a casa como um regulador sensorial. A acústica, por exemplo, tem um impacto direto na regulação emocional. Caixilharias de qualidade, portas maciças e divisórias com isolamento são fundamentais para manter o silêncio e reduzir estímulos inesperados; A iluminação também deve ser pensada ao detalhe: a entrada de luz natural deve ser equilibrada com cortinas ou estores que permitam ajustar a intensidade, enquanto a luz artificial deve ser regulável, evitando o efeito agressivo das lâmpadas fluorescentes. A psicóloga clínica Rita Gama Ferreira reforça precisamente essa importância da regulação sensorial e visual. “Em primeiro lugar, é essencial identificar as características da pessoa em questão para perceber o que a estimula demasiado ou o que a desorganiza. Mas, de forma geral, a luz ajustável - nem demasiado forte, nem fria,e o cuidado com os ruídos são elementos-chave. Os espaços devem ser calmos, com materiais que ajudem a absorver o som, e com uma organização visual simples, onde cada zona tenha uma função definida.” Rita Gama Ferreira, também autora do livro "Estou sempre a mil", destaca ainda a segurança e a previsibilidade como pilares de conforto. “Ter cuidado com velas acesas ou incensos ao ir dormir é fundamental, porque é fácil esquecer e acabar por criar riscos desnecessários. No frigorífico, usar caixas transparentes ajuda a ver o que está lá e evita que os alimentos fiquem esquecidos. E ter uma caixa ou até um quarto onde se possa colocar tudo quando há visitas e a casa está caótica também é uma boa estratégia.” Freepik A estrutura da casa deve ajudar a prevenir sobrecargas sensoriais. Circulações simples, transições suaves entre luz e sombra e zonas de refúgio bem definidas — como um canto silencioso com uma cadeira confortável e luz suave — são elementos que ajudam o cérebro a “desligar”; Os cheiros também contam: tintas, colas e vernizes devem ser de baixa emissão, e é preferível apostar numa exaustão eficiente a recorrer a perfumes artificiais. A especialista acrescenta que um lar neuroamigável também se constrói através de apoios visuais e tecnológicos. “Quadros, checklists ou rotinas visíveis são sempre boas ideias. Definir pagamentos automáticos, usar localizadores nas chaves ou objetos importantes e criar lembretes visuais pode facilitar muito o dia a dia.” No fundo, a casa deve adaptar-se à pessoa, e não o contrário. Decoração que regula: mais função, menos ruído visual Freepik A decoração tem um papel mais profundo do que se pensa. Não é apenas estética: é regulação. A moda pode sugerir tendências vibrantes e cheias de estímulo, mas, para quem é neurodivergente, o objetivo é exatamente o oposto, reduzir a carga cognitiva e aumentar a previsibilidade. A produtora de conteúdos Patrícia Rebelo, diagnosticada com PHDA, descreve o que faz diferença nos seus dias: “Boa luz natural, mas com luzes artificiais suaves.” Um espaço neuroamigável privilegia uma paleta coerente, com uma base neutra e poucos objetos à vista; Os elementos decorativos devem ter significado, não apenas preencher espaço; Mantas, tapetes e cortinados de tecidos suaves ajudam a criar uma sensação de contenção e conforto. A psicóloga Rita Gama Ferreira confirma que esta harmonia visual pode fazer toda a diferença: “Organização simples, rótulos claros e zonas bem definidas por função ajudam a criar previsibilidade. Há pessoas com PHDA que preferem ambientes mais estimulantes e coloridos (e está tudo certo), mas é importante que cada escolha seja intencional, e não fruto do caos.” Organização e rotina: o cérebro também precisa de um mapa Freepik Numa casa neurodivergente, a organização é uma aliada terapêutica. Pequenas estratégias ajudam a transformar o que parece impossível em algo exequível. Em vez de tentar manter um controlo absoluto, o ideal é externalizar a memória e criar sistemas visuais que guiem o comportamento. Colocar autocolantes ou etiquetas nas prateleiras (“pequeno-almoço”, “limpeza”, “snacks”) e usar cores por categoria facilita a orientação; Dividir tarefas grandes em micro-etapas - “guardar loiça”, “passar pano”, “despejar lixo”, evita a sensação de bloqueio e ajuda a começar; Ter cestos por divisão para devolução rápida de objetos fora do lugar é outro truque que poupa energia mental; E duplicar utensílios em diferentes zonas (tesouras, escovas, cabos) reduz o esforço cognitivo associado à procura constante. "Gosto de ter zonas com arrumação visível, uma zona onde possa colocar a tralha quando não quero arrumar - tipo um cesto”, explica também Patrícia Rebelo. Rita Gama Ferreira sugere também a criação de um “canto de regulação”, um espaço onde a pessoa possa recuperar energia sensorial e emocional. “Pode ser uma zona com luz suave e texturas agradáveis, onde se possa ler, desenhar, ouvir música ou fazer qualquer atividade de interesse. É um refúgio essencial nos momentos de sobrecarga.” Limpeza e manutenção: reduzir a fricção Para muitas pessoas neurodivergentes, começar é o maior desafio. O truque é eliminar barreiras. Limpar durante dez minutos cronometrados, usar equipamentos leves e simples, como aspiradores verticais ou mopas em spray, pode tornar o processo menos intimidante. Os produtos de limpeza devem ser neutros e pouco perfumados, e um calendário visual de manutenção ajuda a distribuir tarefas ao longo do mês. Joelle Santos, psicóloga especializada em neurodiversidade, explica: “Para muitas pessoas neurodivergentes, o mais difícil não é fazer, é começar. O cérebro tende a bloquear perante tarefas grandes ou ambientes caóticos. Quando reduzimos as barreiras, simplificamos o primeiro passo e, de repente, o que parecia impossível torna-se apenas uma sequência de pequenos gestos possíveis.” Delegar também é uma estratégia de autocuidado: contratar apoio quinzenal ou mensal pode funcionar como gatilho para manter a casa num nível de ordem confortável entre limpezas. Divisão a divisão: ajustar o ambiente para o cérebro descansar Freepik Ao adaptar cada divisão da casa é possível criar uma espécie de harmonia que "desliga" o constante botão de alarme: A entrada deve ser o ponto de ancoragem. Um cabide firme, uma sapateira ventilada, um banco para calçar e um tabuleiro para chaves ou correio reduzem o caos do chegar e do sair. Na sala, as zonas de uso devem estar bem definidas: uma para conversa, outra para leitura, outra para TV. O mobiliário deve ancorar o olhar e os cabos devem estar ocultos. Tapetes grandes absorvem som e criam conforto visual. Na cozinha, o ideal é seguir a lógica funcional do triângulo entre frigorífico, bancada e fogão. Frascos transparentes evitam desperdício e esquecimento. Uma boa exaustão e superfícies mate reduzem desconforto sensorial. No quarto, a prioridade é o descanso. Blackouts totais, roupa de cama suave e ausência de cabos visíveis criam um ambiente de repouso real. Se houver espaço, uma parede em tom calmante e um difusor sem cheiro são detalhes que fazem diferença. Na casa de banho, a luz deve ser suficiente mas sem encandear. Evitam-se cromados espelhados e produtos de perfume intenso. Texturas suaves e uma organização discreta trazem serenidade a uma das divisões mais pequenas da casa — e, paradoxalmente, das mais sensoriais. “O ambiente físico tem um impacto direto na regulação emocional. Quando a casa é pensada para reduzir estímulos e aumentar o conforto sensorial, deixa de ser apenas um lugar onde se vive, torna-se um espaço que cuida, que organiza e que dá segurança ao pensamento”, concluí a psicóloga Joelle Santos. Fonte: Como deveriam ser as casas dos neurodivergentes? — idealista/news Partilhar artigo FacebookXPinterestWhatsAppCopiar link Link copiado